Dra. Strings é professora associada de sociologia na Universidade da Califórnia em Irvine.
Tradução Miriam Tawill.
Ponto de vista originalmente publicado em 25 de maio de 2020 no The New York Times.
Há cinco anos, fui convidada para participar de uma reunião sobre saúde na comunidade afro-americana. Várias figuras importantes nos campos da saúde pública e econômica estavam presentes. Recém-doutora, me senti estranhamente intrusa. Eu também era a única pessoa negra na sala.
Um dos facilitadores me apresentou aos outros participantes e me perguntou “Sabrina, o que você acha? Por que a população negra está doentes?”
Foi uma pergunta séria. Alguns especialistas haviam dedicado toda sua carreira para abordar questões relacionadas às desigualdades raciais na saúde. Anos de pesquisa e, em alguns casos, intervenções fracassadas, os deixaram perplexos. Por que a população negra está tão doente?
Minha resposta foi rápida e inequívoca.
"Escravidão."
Meus colegas pareciam confusos enquanto tentavam compreender a minha resposta.
Eu quis dizer o que disse: a era da escravidão foi quando os americanos brancos determinaram que os americanos negros precisavam apenas das necessidades básicas, que não eram suficientes para mantê-los idealmente seguros e saudáveis. Isto pôs em marcha o menor acesso das pessoas negras a alimentos saudáveis, condições seguras de trabalho, tratamento médico e uma série de outras desigualdades sociais que afetam negativamente a saúde.
Essa mensagem é particularmente importante em um momento em que afro-americanos experimentam as maiores taxas de complicações graves e a morte por coronavírus e a "obesidade" surgiu como explicação. A narrativa cultural de que o peso das pessoas negras é um arauto de doenças e mortes há muito tempo serviu como uma distração perigosa das reais fontes de desigualdade, e está acontecendo novamente.
É difícil obter dados confiáveis, mas as análises disponíveis mostram que, em média, a taxa de mortes de negros é 2,4 vezes maior que a dos brancos com Covid-19. Em estados como Michigan, Kansas e Wisconsin e em Washington, DC, essa proporção sobe para cinco a sete negros morrendo de complicações de Covid-19 para cada morte de homem branco.
Apesar da falta de clareza em torno desses achados, uma interpretação dessas disparidades que ganhou força é a ideia de que a população negra é indevidamente obesa (atualmente definida como um índice de massa corporal superior a 30), o que é visto como um motor de outras doenças crônicas. Acredita-se que as pessoas negras correm maior risco de complicações sérias do Covid-19.
Essas alegações receberam intensa atenção da mídia, apesar de os cientistas não terem sido capazes de explicar suficientemente a correlação entre obesidade e Covid-19. De acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças, 42,2% dos americanos brancos e 49,6% dos afro-americanos são obesos. Os pesquisadores ainda precisam esclarecer como uma disparidade de 7 pontos percentuais na prevalência da obesidade se traduz em uma disparidade de 240 a 700 por cento das mortes.
Especialistas levantaram questões sobre a pressa de implicar a obesidade, e especialmente a "obesidade severa" (IMC maior que 40), como um fator nas complicações do coronavírus. Um artigo no periódico médico The Lancet avaliou a inclusão da obesidade como fator de risco para complicações por coronavírus pela Inglaterra e respondeu: "Até o momento, nenhum dado disponível mostra resultados adversos do Covid-19 especificamente em pessoas com um IMC de 40 kg/ m2". Os autores concluíram: “A escassez de informações sobre o aumento do risco de doenças para pessoas com IMC superior a 40 kg / m2 levou à confusão e aumento da ansiedade, uma vez que esses indivíduos agora foram considerados vulneráveis a doenças severas se contraírem Covid-19. "
A promoção de associações tensas entre raça, tamanho corporal e complicações dessa doença pouco compreendida serviu para reforçar uma imagem das pessoas negras como sendo ligadas aos prazeres sensuais como comer e beber, o que supostamente torna nossos corpos desgovernados um repositório de doenças preveníveis relacionadas ao ganho de peso. As atitudes que vejo hoje têm ecos do que descrevi em "Fearing the Black Body: The Racial Origins of Fat Phobia" (Temendo o corpo negro: as origens raciais da gordofobia). Minha pesquisa mostrou que atitudes anti-gordura se originaram não com achados médicos, mas com a crença da era do Iluminismo de que a superalimentação e a gordura eram evidências de "selvageria" e inferioridade racial.
Hoje, os riscos dessas discussões não poderiam ser maiores. Quando aprendi sobre as diretrizes que sugerem que médicos podem usar as condições de saúde existentes, incluindo a obesidade, para negar ou limitar a elegibilidade a tratamentos de coronavírus que salvam vidas , não pude deixar de pensar nos debates da era da escravidão sobre se os chamados Afro-americanos “constitutivamente fracos” deveriam receber assistência médica.
Felizmente, desde o evento em que participei há cinco anos, especialistas focados na saúde dos afro-americanos continuaram trabalhando para desviar a atenção do país dos fatores individuais.
O Projeto 1619 do New York Times apresentou ensaios detalhando como o legado da escravidão impactou a saúde e os cuidados de saúde para afro-americanos e explicando como, desde a era da escravidão, os corpos dos negros foram rotulados como congenitamente doentes e por isso não merecedores de acesso a tratamentos que salvam vidas.
Em um recente ensaio abordando especificamente o Covid-19, Rashawn Ray destacou as consequências do redlining (negar empréstimos ou seguros a pessoas que vivem em bairros considerados pobres ou sob risco financeiro), que impele mais ainda a população negra para comunidades pobres e densamente povoadas, com acesso limitado a cuidados de saúde. E ele ressaltou que os negros são numerosos em cargos como trabalhadores essenciais que têm maior exposição do que aqueles com o luxo de se abrigar no local. Ibram X. Kendi escreveu que o “comportamento irresponsável de pessoas de cor desproporcionalmente pobres” - frequentemente citado como um fator importante nas disparidades na saúde - é um bode expiatório que desvia a atenção dos americanos da centralidade do racismo sistêmico nas atuais desigualdades raciais na saúde.
Avaliar os dados inadequados e questionáveis sobre raça, peso e complicações do Covid-19 com essas ideias em mente deixa claro que a obesidade - e seus desdobramentos, não devem estar na frente quando se trata de entender como essa pandemia afetou afro-americanos. Mesmo antes do Covid-19, a população negra americana tinha taxas mais altas de múltiplas doenças crônicas e menor expectativa de vida do que a população branca, independentemente do peso. Isso é uma indicação de que nossas estruturas sociais estão falhando conosco. Essas falhas - juntamente com a crença de que os corpos negros são especificamente defeituosos - estão enraizadas em uma era vergonhosa da história americana que ocorreu centenas de anos antes dessa pandemia.